“Sou negro de corpo e alma” (Dom José e a consciência de raça)

No transcurso, hoje, do Dia da Consciência Negra no Brasil, voltamos as atenções para dom José Maria Pires, que se destacou como arcebispo da Paraíba por três décadas, como uma voz contra a ditadura militar e que esta semana recebeu “in memoriam”, da Assembleia Legislativa, o título de Cidadania Paraibana, que lhe fora outorgado sob censura, levando-o a se recusar a receber a honraria. Numa entrevista que concedeu à revista “Família Cristã” em janeiro de 2015, quando era, então, arcebispo emérito da Paraíba, ele se assumiu como “negro de corpo e alma”. Sempre teve orgulho da sua cor, da sua raça.

Popularmente era conhecido como Dom Pelé, em homenagem ao atleta santista que se destacou na década de 1960, já que ele mesmo se destacava como o único bispo negro do país (em 2015, eram apenas treze bispos negros). Dom José, porém, preferida ser identificado como dom Zumbi, designação que lhe foi dada por dom Pedro Casaldáliga, a pretexto de rebatizá-lo na celebração do centenário da Abolição da Escravatura em 1988, na Serra da Barriga, que fica a cerca de nove quilômetros do município de União dos Palmares, em Alagoas. O menino José sentira preconceito no seminário, conforme contou na entrevista à revista “Família Cristã” e em outras entrevistas, inclusive, a jornalistas paraibanos.

No perfil para a “Família Cristã”, a repórter Karla Maria escreveu: “Muito antes de ter autoridade para enfrentar militares, dom José foi vítima de uma tortura institucionalizada, aceita socialmente: o preconceito de raça. Em um dia normal de seminário, pisou no cordão de um colega, em Minas Gerais. Branco, filho de família nobre, foi motivo o bastante para descobrir qual era o seu lugar. “Ele me mostrou um canivete e disse: Lá fora, você me paga”. Na hora do recreio, eu fui pra cima dele e nós rolamos. Aí veio o regente, nos separou e nos colocou de castigo”. Os dois ficaram de castigo até o regente justificá-lo para o diretor. “Este menino aqui é de boa família (o branco); este (o negro) aqui é que não presta”. Dom José disse que durante a sua vida no seminário, várias vezes, sentiu o preconceito, a discriminação.

– Como padre, várias vezes, a gente sentiu na paróquia essa discriminação e, como bispo, a coisa ainda veio, uma senhora afirmou: “O senhor é um bispo de alma branca” – revelou dom José, completando: “Eu me honro de ser negro. Sou negro no corpo e na alma. Olha meu cabelo, meu nariz, meu coração só podiam ser de negro”. Tinha 95 anos de idade quando proferiu essas declarações. A face discriminatória do catolicismo com os negros no Brasil é antiga. A igreja, as confrarias e as ordens religiosas foram grandes proprietárias de escravos durante a colônia e o império. Enquanto os abolicionistas lutaram pelo fim da escravidão desde a Independência do Brasil, em 1822, a Igreja Católica só divulgou a encíclica do papa Leão XIII condenando a escravidão em junho de 1888, um mês depois da Abolição.

A jornalista Valquíria Rey, em texto para a BBC Brasil, ainda em 2007, lembrou que nas primeiras décadas do século passado, a discriminação permaneceu com os seminários brasileiros vetando a entrada de noviços negros e mulatos. Somente alguns anos depois da aprovação da Lei Afonso Arinos, em 1951, punindo todas as atitudes de discriminação racial, as congregações religiosas tiraram oficialmente de seus estatutos e normas internas a proibição de acesso para os negros. “Houve uma época em que os negros tinham dificuldades em ingressar nas congregações religiosas”, afirmou dom Gílio Felício, que foi bispo responsável pela Pastoral Afro-brasileira da CNBB. “Depois que isto acabou, ficaram os condicionamentos, a partir do número diminuto de padres negros no Brasil”. O bispo de Guarapuava, no Paraná, Antônio Wagner, dizia que o baixo percentual de negros na Igreja refletia um problema enfrentado por toda a sociedade.

Dava como exemplo que o número de afrodescendentes não era pequeno apenas no episcopado. Era assim, também, nos altos escalões das Forças Armadas, no governo, nas universidades. Muitos na Igreja não assumiam o fato de serem afrodescendentes por medo de preconceito. “Um italiano pode formar seu grupo de danças, por exemplo. Alemão pode, polonês pode, ucraniano pode, português pode, mas quando um grupo de negros se reúne e quer fazer suas danças, vira um escândalo”, completou. E a BBC informava: “No pequeno grupo dos afrodescendentes, dom José Maria Pires, arcebispo emérito da Paraíba, é uma referência. Por conta de sua atuação na luta contra o racismo, ele ficou conhecido como dom Zumbi”.

ManchetePB com Nonato Guedes 

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