Entre as várias áreas da paleontologia, ciência que investiga formas de vida no passado remoto da Terra, uma se destaca pela singularidade: a paleoicnologia. O termo complicado dá nome ao estudo das atividades biológicas dos organismos que viveram há milhares de anos. Digamos que, ao caminhar pelo planeta, um dinossauro cavou uma toca, desgastou alguma rocha ou fez suas necessidades na natureza. Se as condições geológicas forem favoráveis e os produtos dessas ações ficaram preservados pelo tempo, eles recebem o nome de icnofósseis. As pegadas deixadas por esses animais, fossem eles quadrúpedes gigantescos ou pequeninos bípedes, também se encaixam nessa classificação. Na América Latina, a Bolívia é o paraíso dessas impressões. Atualmente, contam-se 15 000 delas no país, um número sem paralelo no mundo.
Parte da rota migratória dos dinossauros no Cone Sul, as trilhas que se estendem por milhares de quilômetros no território boliviano foram percorridas na Era Mesozoica principalmente por saurópodes de pescoço longo, anquilossauros com espinhos e terópodes que andavam sobre duas pernas. Os locais por onde esses animais se deslocavam entre 252 milhões de anos e 66 milhões de anos atrás são Cal Orck’o, Maragua, Torotoro, Rio Caine, Parotani, Quila Quila, entre outros. As marcas deixadas pelos dinos bípedes, mais ágeis, se destacam e incluem desde pequenas pegadas que não chegam a 10 centímetros de extensão até enormes rastros com mais de 1 metro. Se é prolífica nesse tipo de vestígio pré-histórico, a Bolívia ainda não encontrou um fóssil completo de dinossauro para chamar de seu.
Para que sejam encontradas pegadas de dinossauros há a necessidade de afloramentos que exponham as superfícies por onde os animais caminharam. Não é algo fácil de se conseguir, pois a erosão, as condições climáticas e a vegetação alteram as rochas ao longo do tempo. Especialistas explicam que, na Bolívia, existe uma situação ideal para isso, pois as grandes montanhas, parte da Cordilheira dos Andes, expõem muitas camadas rochosas e, em geral, há pouca alteração dessas superfícies. “Apesar de a impressão das patas se preservar como molde, essas mesmas condições ambientais não são adequadas para a preservação de restos ósseos, pois eles se degradam rapidamente quando expostos ao ar”, diz o paleontólogo Ismar de Souza Carvalho, professor do Departamento de Geologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
No Brasil, o Vale dos Dinossauros, na região de Sousa, na Paraíba, também exibe vestígios da passagem desses bichos por suas relvas pré-históricas. Segundo Carvalho, trata-se de uma área em que as rochas ficam expostas ao longo dos leitos dos rios, secos na maior parte do ano. Já foram encontrados nesse município e em outros próximos, como Uiraúna e Brejo das Freiras, quase quarenta localidades com pegadas fósseis. Contam-se, segundo o paleontólogo, pelo menos 1 500 pegadas de dinossauros e de outros grupos de répteis, isoladas ou formando trilhas. Os rastros pertencem aos grupos de terópodes, geralmente carnívoros, além de saurópodes e ornitópodes, quase sempre herbívoros.
Embora a situação econômica do Brasil seja melhor do que a da Bolívia, o investimento em pesquisas desse tipo é precário em ambos os países. Entre os bolivianos, faltou dinheiro no pré-histórico governo de Evo Morales, devido à crise econômica. No caso brasileiro, o incentivo público às pesquisas vem sendo depauperado, com a aversão de Bolsonaro ao conhecimento. Para o paleontólogo Rodrigo Santucci, da Universidade de Brasília, é um erro, pois esses sítios paleontológicos poderiam se tornar fonte de renda turística. “Em Araraquara (SP), há muitas dessas pegadas, mas esses sítios acabam sendo abandonados ou destruídos”, diz. É uma pena. A ciência, afinal, não tem um fim em si mesma e pode servir como ponto de atração para outros setores.
Do Manchete PB
Com Veja