A foto tirada na última quinta (30), dia do listão da Universidade Federal do Pará (UFPA), viralizou nas redes sociais e foi compartilhada dezenas de milhares de vezes. E como manda o rei do carimbó Pinduca na tradicional “Marcha do Vestibular”, música que anima a festa de calouros paraenses, Alcyr Ataíde Carneiro, de 61 anos, aparece tendo o cabelo cortado pela mãe de 90 anos. Juntos os dois comemoram a aprovação dele em terceiro lugar no curso de enfermagem. “Em todos esses anos, com certeza esse foi o momento mais indescritível da minha vida”, ele diz.
Morador do bairro do Coqueiro, em Belém, Alcyr vive com a mãe em uma casa de madeira alugada, trabalhando há, pelo menos, 23 anos cortando grama em quintais. Ele já foi recenseador, fez serviços gerais e trabalhou como cobrador de ônibus.
Em entrevista exclusiva ao G1, ele comenta que decidiu se dedicar aos estudos para tentar vaga no ensino superior e tentar melhorar a situação da família, já que mora somente com a mãe. Para ele, a sensação de ser aprovado na primeira tentativa é resultado de um ano de dedicação, perseverança e força de vontade:
“Cheguei ao ponto de pensar que havia duas saídas – ganhava na mega sena, o que é quase impossível, ou vencia através do estudo. Optei pela educação, porque além de obter sucesso, terei conhecimento, e isso não tem preço!”, revelou.
Alcyr conta que se matriculou em um cursinho pré-vestibular em março do ano passado, quando as aulas já haviam começado há um mês, e que dividia a sala com garotos entre 16 e 18 anos. As aulas no período da tarde, das 13h30 às 18h, e as revisões em casa pelas noites e madrugadas ocorriam depois da manhã “árdua” de trabalho, de domingo a domingo.
‘Mesmo com todo esse esforço, eu nunca faltei uma aula sequer, nunca cheguei atrasado, queria participar de tudo, e todos me incentivavam – os colegas, os professores, a coordenação, o segurança, o pessoal que trabalhava na limpeza. Eu até brincava que se dependesse de torcida, eu já estava aprovado. Me senti valorizado, por isso eu sempre dediquei o máximo”, contou.
Jaleco
O quarto de Alcyr virou uma sala de estudos, ele descreve. Livros doados se amontoaram em uma biblioteca particular. O chão chegou a ficar cheio de papéis rabiscados nas práticas de redação. Mas um objeto, como ele conta, foi determinante para que não perdesse o foco.
Um sobrinho de Alcyr, médico, costumava doar calças e camisas usadas, já que ele “não tinha muitas condições de comprar muitas roupas”. “Uma vez ele me deu um jaleco, para eu usar no trabalho. Eu lavei, coloquei em um cabide e deixei no meu quarto. Tinha um pensamento que aquele jaleco seria um motivo para me incentivar a não desistir. Até hoje, ele está lá do mesmo jeito que eu coloquei pela primeira vez, foi como um talismã”.
“Quando estava cansado, exausto e achando que não ia conseguir, olhava aquele jaleco e dizia para mim mesmo: um dia vou estar usando um jaleco como esse”, revela, emocionado.
Prova
Nos dias do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), Alcyr disse que foi um dos primeiros a chegar no local de prova. “Queria chegar cedo, como sempre procuro fazer, para ver todo o processo, entender como funciona. Aí eu entrei na sala, fui bem recebido pelos fiscais, ouvi atentamente as regras, o que poderia fazer, o que não poderia, segui tudo à risca”.
Nem o celular o candidato levou, com medo que tocasse no meio do certame. “Levei quatro canetas, preocupado se a caneta pudesse falhar. Eu estava ansioso, mas ao mesmo tempo na expectativa de fazer uma boa prova. Então aproveitei do primeiro ao último minuto, fui o primeiro e o último a sair”.
Aprovação e sucesso na internet
No Pará, o resultado do processo seletivo é tradicionalmente informado também pelas rádios. Alcyr conta que saiu do trabalho e pegou o aparelho em casa para acompanhar o anúncio dos novos calouros, que começou a partir das 14h. “Estava eu e meu cachorro, começou o listão e nada de chegar enfermagem. Na primeira turma, meu nome não saiu. Achei que não tinha passado. Aí chegou a segunda turma e meu nome estava lá. Até joguei o rádio na parede de tanta emoção, saí correndo de bermuda na rua, gritando, tanto que até hoje estou rouco, procurei minha mãe e só consegui abraçá-la, sem conseguir falar”. A comemoração foi do jeito que somente os paraenses conseguem fazer. Pessoas na rua, ovos quebrados na cabeça e a marchinha de Pinduca.
Depois que os familiares publicaram a tão compartilhada foto da aprovação, Alcyr começou a receber muitas mensagens de carinho e parabenizações. Ao lembrar, a voz de Alcyr começa a entrecortar de emoção, mas ele tenta descrever: “Muitas pessoas vieram me parabenizar, eu nem esperava tudo isso, mas foi uma felicidade tão grande, me senti tão honrado, que eu vou ser sincero, até hoje ainda me deixa cheio de emoção”.
Dois dias após a comemoração, Alcyr foi até o cursinho onde passou o ano se preparando, para uma visita. Abraçou a coordenadora, que o levou até a sala dos estudantes do terceiro ano do ensino médio. “Ela pegou e contou minha história para eles; lembrou que eu já cheguei até a trabalhar na limpeza da escola para ajudar a pagar mensalidade; falou da minha luta e que eu era motivo de orgulho. Aproveitei e falei para eles que nunca é tarde, que todos somos capazes e temos que fazer nossa parte”. O discurso terminou com abraços e lágrimas dos estudantes que tanto conheciam a fama de estudioso que Alcyr construiu no local.
Expectativas
Nesta terça (4), Alcyr já deve comparecer para habilitação na instituição federal. Os documentos já reunidos com a ajuda de familiares e as expectativas altas para o início da vida acadêmica. “Escolhi a enfermagem por que para mim é uma profissão digna, assim como muitas outras, mas como já fiz cinco cirurgias, em vários hospitais, sempre fui muito bem atendido por enfermeiros, médicos, aí passei a ter uma simpatia pela área da saúde. Pretendo ser competente e digno para ter uma vida melhor para mim e minha família, além de dar minha contribuição para a sociedade, ajudar as pessoas, sem discriminação, pessoas de baixa renda. Foi por tudo isso que optei pelo curso”.
“Quando coloquei na minha cabeça que tinha esse objetivo, eu corri atrás e passei a ver os estudos não como algo a me forçar a fazer, mas algo que me dava alegria, satisfação. Só Deus sabe o que passei, mas acho que uma coisa é certa: consegui esse êxito porque tudo que fiz para alcançá-lo foi porque eu acreditei que a educação é capaz de transformar a vida das pessoas”, afirma.
Do G1